sexta-feira, fevereiro 04, 2005



A primeira coisa em que ele pensa esta manhã é nos olhos dela, aqueles olhos grandes, azuis, poderosos, olhos tão imensos que o trespassam antes mesmo de abrir os seus. De pálpebras cerradas - mas já pressentindo a luminosidade que enche o quarto (não é que deixou outra vez o raio das portadas das janelas abertas?) - começa por adivinhar para onde olha ela. Para a direita da cama, bem para lá da porta que dá para o quarto de vestir. Mas não, o quarto de vestir não lhe interessa. Abre os olhos e ela aqui está suspensa na parede mesmo em frente: é loira (claro!) e os olhos agressivos, azuis, furiosos na expressão lançada a alguma coisa ou alguém. Ele não sabe, nunca saberá. A tela é rectangular e de horizontalidade longa, recortada à largura dos olhos dela, emoldurada por algumas madeixas loiras. Do nariz, o resoluto traço superior. A boca, um mistério. Pop Art, à maneira dos comics que recheiam as bancas de cidade e os quartos imundos dos putos. Jamais saberá o nome dela, a menos que a baptize. Mas eu quero saber o nome dele: o nome dele será Roy, Roy eu te baptizo. Porque te vejo tão bem, é o nome que quero que tenhas. Como se estivesses aqui desenhando.
E depois da mulher mistério, é o maldito cronómetro que o inquieta. Dez e vinte e oito no despertador electrónico. Sempre esta horrorosa sensação de ter esquecido algo fundamental para o bom funcionamento do mundo. Mas desta vez nada. Um alívio, um sorriso, espreguiçar ruidosamente e abrir de novo os olhos por causa do optimismo típico dos patetas felizes. Está sozinho na cama (para variar, pensa ele!), uma cama grande de casal, e há outra grande almofada vazia do seu lado direito. Duas mesas de cabeceira e toda uma mobília de quarto, odiosa e inútil. Uma futilidade burguesa, diria há um par de anos atrás. Nem mesmo num dia de folga, em que o prazer de renunciar a todas as obrigações deveria ser um facto higiénico, a tirania inconsciente do compromisso deixa de actuar.
Mas o olhar dela é matreiro. Fixa-o, e nem está a olhar para ele. Que se passa do outro lado da perspectiva? Uma rival igualmente agressiva? Um amante infiel, como um objecto que ora se cobiça, ora se desdenha? As mais complexas hipóteses são sempre as mais apetecidas: neste o seu quarto, que lhe custou uma fortuna mobilar, todo este imaginário que o circunda jamais poderia ser simples. Será então um homem forte, bonito, e jamais um lorpa imbecil ou um troglodita barrigudo; também não é um modelito fotográfico insípido e imberbe. Esse homem está, por necessidade, ligado à fúria deste olhar e deste desprezo. Ele quer ter aqueles olhos, beber daquele carácter inebriante, poder também ostentar aquele olhar. Que já não é andrógino. Agora tornou-se cem por cento masculino de mulher fatal. E quando pendurou aquele quadro sabia que assim poderia espreitar-se todas as manhãs ao espelho, de preferência sem confusões de maior, e poder ser um homem igual àquela mulher.

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