quarta-feira, fevereiro 02, 2005

Crónicas Inúteis

Saio apressadamente do escritório onde trabalho e desço as escadas com a rapidez do costume, com medo que o telemóvel toque e me obrigue novamente a subir, devido a uma idiotice qualquer. Quando chego à rua sinto que sou, uma vez mais, a pessoa mais feliz do mundo. Uma sensação que persiste em repetir-se todos os dias, usualmente entre as seis e as sete, hora em que saio aliviado do local onde perco as melhores horas da minha vida, e onde sou diariamente submetido ao Grande Flagelo que se impõe à Humanidade desde o início dos Tempos: o Trabalho. Raios te partam, Eva.

Tenho, contudo, a certeza de que esta eufórica alegria pós-laboral foi também maximizada pelo avantajado Vodka Tónico que o meu estimado patrão me serviu exactamente às cinco e cinquenta. São íncriveis os esquemas que se inventam para obrigar os reles empregados a trabalhar uns minutinhos extra.

Enquanto caminho pela Rua Prof. Sousa da Câmara em direcção a casa, acendo um cigarro - o mal que me ajuda a relaxar e a iniciar o processo de contemplação urbana mórbido a que me sujeito sempre durante este percurso. Observo e sinto tudo: a cor do céu e as silhuetas dos edifícios que nele se recortam, o frio que me gela as mãos, o palrear incessante do povo, os dejectos que irritantemente se dispõem de forma aleatória pelo chão, o rasto luminoso das luzes dos automóveis, os relógios, a publicidade, a pressa, os rostos apressados das pessoas que se acotovelam nos passeios.

O sinal fica verde para os peões e atravesso a rua, juntamente com a massa humana, em direcção às Amoreiras, os cubos retorcidos infantis que coroam este lado da cidade. Penso:

"Pá... esta cena ficava mesmo bem num blog."

É neste preciso momento que reparo que estou - sem qualquer intenção - em sincronia pedonal com um rapaz, algures entre os vinte e os trinta e com muito, muito bom aspecto. Pelo menos, visto pela parte de trás. Ombros largos, pescoço grosso, cabeça rapada, um rabo evidente a condizer com o corpo forte, as mãos grossas e os dedos cheios de tinta seca, branca. Lembro-me que desde sempre dei preferência à construção civil, entre os demais.

Atravesso a rua, sempre atrás deste gajo - a que doravante chamaremos de Bruno. Não tenho qualquer intenção de ultrapassá-lo para verificar como é a sua aparência vista de frente, até porque isso implicará virar-me para trás e denunciará provavelmente a minha curiosidade. Convém neste momento relembrar de que estou apenas em pleno processo contemplativo e, acima de tudo, sigo um rígido código de conduta que me impossibilita de expôr a terceiros, neste caso, ao Bruno. Não que eu tenha medo de que ele possa não gostar que eu olhe para ele, eu é que insisto em fingir-me desinteressado:

"In my beauty I am safe."

Passados dois minutos a andar pela Silva Carvalho estou, como seria de esperar, prestes a mandar a princesice para o tanas. Acelero o passo? Valerá a pena? Não, maldito Vodka, eu vou tentar não pensar mais nisto, olha ali aquela mulher a arrastar a cria obesa e esperneante. Hmmm, que pescoção.

Estou quase no cruzamento com a D. João V e faz-se luz: são sempre três minutos garantidos de espera pelo sinal verde, enquanto os carros passam. É claramente tempo suficiente para ficar lado a lado com o Bruno, e enquanto olho para a esquerda-direita, verificar discretamente como se parece visto de frente.

Chegamos quase simultaneamente ao momento da verdade. O cabrão até se pôs mesmo a jeito à minha esquerda. É agora! Olho primeiro para a direita, impaciente, mas sempre sempre do alto do meu pedestal, e depois para a esquerda:

...É feio.

E sigo o resto do caminho que me falta. Em direção a casa. Embaraçado comigo próprio.

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